No início do período moderno, a burguesia nascente sabia como ‘fazer negócios’, isto é, como retirar lucro de suas trocas mercantis; sabia como cobrar os juros e os preços. Todavia, não conseguia ainda entender muitas das ‘leis do mercado’; não compreendia, acima de tudo, de onde proveria a força do dinheiro para moldar o mundo à sua (do dinheiro) imagem e semelhança. Para se ter uma idéia, a lei da oferta e da procura, então já ativa há séculos, apenas foi descoberta na Inglaterra por volta dos anos de 1580: até então os preços subiam ou desciam sem que se soubesse explicar e, portanto, ‘prever’, est as variações. Foi para investigar questões como essa que surgiu a Economia Política Clássica. E foi com ela que surgiu a distinção entre o trabalho produtivo e improdutivo.
Com o desenvolvimento das relações mercantis, a burguesia começou a se dar conta de que há dois, digamos, ‘tipos’ de salários: um do qual advém lucro e, outro, que não. Numa manufatura, por exemplo, quanto mais artesãos o burguês puder contratar (e isto depende, claro, não apenas de sua vontade, mas fundamentalmente das condições do mercado) maior será o seu lucro. O salário dos artesãos é um salário que gera lucro. Por outro lado, um segundo contador, mais vigias, etc., são salários que não geram lucro, antes, são ‘custos’. Foi a partir de então que começou a fazer sentido a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo. O primeiro é aquele ‘produtivo de lucro’, o segundo representa o custo do negócio.
Na Idade Média, no escravismo ou no período primitivo, um trabalho ‘improdutivo’ seria a mais completa inutilidade. Iss o porque, com todas as mediações cabíveis a cada formação social, o trabalho ainda estava muito próximo da produção de valores de uso e, por isto, falar em trabalho produtivo não passava de tautologia. Foi com a expansão das relações mercantis entre os séculos XV e XVIII, isto é, com o crescimento da importância na reprodução social do valor de troca, que tivemos a gênese da distinção entre aquele trabalho assalariado que produz lucro e aquele outro que não o produz. Um bom negócio deveria contar com o máximo de trabalhadores produtivos e o mínimo necessário de improdutivos, por exemplo.
Com a Revolução Industrial (1776-1830), junto com o conjunto da sociedade burguesa, a distinção entre o trabalho produtivo e o improdutivo atingiu a sua maturidade. A indústria se tornou o pólo mais dinâmico da reprodução do capital e o lucro comercial ou os juros deixaram de ser o seu momento predominante (que é distinto do seu momento fundante, como veremos mais à frente). Com isso, as categorias de trabalho produtivo e improdutivo também adquirem sua maturidade histórica: é produtivo o trabalho assalariado que produz mais-valia e improdutivo aquele que não produz mais-valia.
Até esse ponto foi a Economia Política Clássica. Da perspectiva do capital – e tão somente dessa perspectiva – a distinção fundamental a ser feita é entre as atividades assalariadas que produzem mais-valia e aquelas que não produzem mais-valia. Dessa perspectiva - muito restrita - os trabalhadores assalariados se dividem em dois grandes agrupamentos. O primeiro é composto: 1) pelos trabalhadores que, no agrobusiness, nas fábricas e no transporte, transformam a natureza; e, 2) também por aqueles trabalhadores que, no setor de serviços, produzem mais-valia, como o professor da escola privada e outras atividades assemelhadas (mais sobre isto à frente).
O segundo agrupamento é composto: 1) pelos trabalhadores que, no interior das fábricas, agrobusiness, transporte e serviços que produzem mais-valia exercem as atividades de controle e vigilância dos trabalhadores: os engenheiros, que concebem como e o que será produzido, os funcionários do departamento de pessoal, do departamento jurídico, os executivos que administram o negócio, os assistentes sociais, os vigias e toda a hierarquia que compõe o ‘despotismo’ do capital sobre o trabalho, etc.; 2) os trabalhadores dos serviços que não produzem mais-valia (os empregados domésticos, etc.); 3) os trabalhadores do Estado (sempre o aparelho especial de repressão com que as classes dominantes contam para manter a reprodução de sua propriedade privada); e, 4) por fim, os empregados do comércio e dos bancos (sobre eles, voltaremos mais abaixo). Todos esses trabalhadores não produzem mais-valia: representam ‘custos’.
Os trabalhadores improdutivos compõem uma enorme massa de assalariados, muito mais numerosa e heterogênea do que a dos trabalhadores produtivos. Todavia, imediatamente (ou seja, não é est a toda a história), o capital se valoriza pela produção da mais-valia. Se isso é assim, por que então necessita o sistema do capital de tal quantidade de assalariados que não produzem mais-valia? Porque o sistema do capital é perdulário em sua essência. Ele precisa de um sistema de controle hierárquico sobre o trabalho que é um gigantesco desperdício: desde as carteiras de identidade e passaportes, até o controle minucioso das ações dos operários no interior das fábricas, a sociedade burguesa vai se desenvolvendo em um enorme mecanismo de controle da sociedade. Essa perdularidade é o que torna imprescindível a gênese, o crescimento e hipertrofia do setor improdutivo.
A perdularidade essencial ao sistema do capital torna o trabalho improdutivo indispensável à sua reprodução. Esse fato gera a ilusão de que, por serem ‘necessários’ à reprodução do capital, os trabalhadores improdutivos seriam igualmente produtivos: a distinção entre trabalhadores produtivos e improdutivos teria desaparecido, ou perdido importância, nos dias de hoje. Braverman, com Trabalho e Capital Monopolista (1981), é o mais clássico representante dessa vertente. Para Marx, a distinção entre o trabalho produtivo e improdutivo não se radica no fato de serem necessários ao capital – ambos o são, como vimos – mas sim nas distintas funções sociais que exercem: o primeiro produz mais-valia, o segundo não o faz (Marx, 1985).
É essa distinção – ontológica – entre as funções que exercem na reprodução do capital que faz com que, do ponto de vista da reprodução do capital (e esta não é, repetimos, toda a história), Marx adote criticamente a distinção da Economia Política Clássica: os trabalhadores se dividem entre aqueles que geram mais-valia e aqueles que não o fazem.
Essa não é, todavia, toda a história.
Como a relação entre o capital e a humanidade não é uma relação de identidade, mas de alienação (Entfremdung), a reprodução do capital não é idêntica à reprodução do ser social. A sociabilidade, se Marx estiver correto, tem no intercâmbio orgânico com a natureza (o trabalho) sua categoria fundante. Se o trabalho funda o ser social em sua universalidade, o trabalho primitivo funda as sociedades primitivas, o trabalho escravo funda o escravismo, o trabalho servil o feudalismo e, por fim, o trabalho proletário funda o modo de produção capitalista. E a razão decisiva dessa situação ontológica é que sem a transformação da natureza nos meios de produção e de subsistência não há qualquer reprodução social possível. Portanto, se a produção da mais-valia é a mediação pela qual se dá imediatamente a reprodução do capital, isto não cancela o fato de que a reprodução da sociabilidade capitalista depende de sua capacidade em continuar retirando da natureza os meios de produção e subsistência a ela imprescindíveis. Ou seja, a distinção entre o trabalho produtor de mais-valia e não produtor de mais-valia não é a única na reprodução do sistema do capital. Há também a distinção entre o trabalho fundante que retira da natureza os meios de produção e de subsistência e o trabalho abstrato, ou seja, a totalidade das atividades assalariadas. É essa distinção que particulariza os proletários frente aos demais assalariados: proletários (ou operários) são os trabalhadores assalariados que, ao converterem a natureza, fundam a sociabilidade burguesa. São eles, nas palavras de Marx, os “produtores” do capital (Marx, 1985, p. 188, n.70).
A complexidade do conjunto dessas relações reside no fato de que duas dimensões da vida social –igualmente reais - sobrepõem-se pela mediação dos complexos alienantes oriundos do capital. A primeira: se quase toda conversão da natureza se transformou em trabalho assalariado, nem todo trabalho assalariado converte a natureza em meios de produção e de subsistência. A segunda: se toda conversão da natureza em meios de produção e de subsistência por meio do trabalho assalariado produz mais-valia, nem toda a geração de mais-valia ocorre no intercâmbio com a natureza. Vejamos cada uma dessas sobreposições:
- O trabalho proletário do campo e da cidade: produz a mais-valia pela conversão da natureza em meios de produção e de subsistência. Produz novos produtos (ferro, alimentos, roupas, casas, carros, estradas, etc.) que, por advirem da transformação da natureza, continuam existindo após o fim do processo de trabalho. Assim, a cada instante trabalhado o proletário acrescenta um novo quantumde riqueza ao já acumulado pela sociedade, ampliando a riqueza geral da sociedade. Uma sociedade com mais estradas, ferro, alimentos, etc. do que no passado acumulou uma riqueza que corresponde ao montante de trabalho humano plasmado nos novos produtos. Do ponto de vista da reprodução do capital, essa ampliação da riqueza da sociedade comparece como a ampliação do capital social total, para empregar a expressão de Marx (1985 ). Ao produzir um novo meio de produção ou de subsistência, o proletariado produz um novo quantum de capital: ele valoriza o capital ao produzi-lo. E como a transformação da natureza requer a atuação da “corporalidade” (Marx, 1983, p.149-50) dos humanos, est e é necessariamente um 'trabalho manual'. “(... ) [C]omo o homem precisa de um pulmão para respirar, ele precisa de uma 'criação da mão humana' para consumir produtivamente forças da natureza” (Marx, 1985, p. 17).
- O trabalho produtivo de mais-valia fora do intercâmbio com a natureza: com o desenvolvimento das relações mercantis, expande-se uma nova possibilidade de valorização de capital pela exploração de alguns serviços (nem todos os serviços, evidentemente). O exemplo de Marx é o do professor em uma escola privada (Marx, 1985 ). Outros muitos exemplos podem ser dados, inclusive os dos profissionais da saúde que trabalham nos planos de saúde e hospitais privados. Nessa esfera, temos a geração da mais-valia ao o capital vender o serviço por um valor maior do que o valor da força de trabalho empregada: o preço da aula que os pais pagam é muito superior ao valor da hora-aula do salário do professor, etc. Nisso, as coisas são análogas ao que encontramos no trabalho proletário. A distinção fundamental está na função social que exercem tais trabalhadores produtivos não operários: eles geram mais-valia, eles 'valorizam' o capital e, todavia, não 'produzem' capital. O montante de mensalidades que os pais pagam ao burguês dono da “fábrica de ensinar” (Marx, 1983, p.106) é idêntico à soma da mais-valia apropriada pelo patrão acrescida dos salários e dos custos de manutenção da escola (incluindo as propinas aos funcionários públicos, etc.). O dinheiro (isto é, a riqueza empregada para as despesas pessoais) dos pais dos alunos se transfere para o cofre do burguês. O que os pais dos alunos perderam de um lado, o burguês ganhou de outro: não houve a produção de nenhum novo quantumde riqueza, nem o capital social total se ampliou. Houve, apenas, a conversão da riqueza que já existia sob a forma de dinheiro no bolso dos pais dos alunos na riqueza sob a forma de capital no cofre do burguês. Esse é o exemplo clássico da geração de mais-valia sem a 'produção' do capital.
De onde, todavia, se originou esse dinheiro que estava no bolso dos pais dos alunos? Sempre do trabalho proletariado, o que varia apenas é a mediação. Se o pai do aluno for um burguês que expropria diretamente os operários, veio da riqueza produzida por est es últimos. Se ele for um burguês do comércio e dos bancos, veio da mais-valia produzida pelos operários, como veremos logo abaixo. Se ele for um assalariado não- proletário da indústria, ou um assalariado dos bancos ou do comércio, a riqueza que é convertida em seu salário também advém da riqueza produzida pelos proletários. O mesmo ocorre com o funcionário público, pela mediação dos impostos. Portanto, a origem de toda a riqueza sob a forma de dinheiro presente na sociedade é o trabalho proletário.
O trabalho produtivo de mais-valia exerce, portanto, duas funções sociais distintas: o trabalho proletário 'produz' o capital, o trabalho produtivo não- proletário apenas gera mais-valia pela conversão da riqueza já existente sob a forma de dinheiro para a forma capital. E, de um ponto de vista mais amplo que a mera reprodução do capital, temos aqui a relação entre o trabalho fundante da sociabilidade (trabalho proletário que realiza o intercâmbio orgânico com a natureza) e a porção fundada da vida social (os demais complexos da sociedade burguesa): o trabalho proletário produz o capital, gera toda a riqueza da sociedade capitalista. Funda, por isso, a sociabilidade burguesa madura. O trabalhador produtivo não-proletário, como o professor da escola privada, não produz o capital, apenas converte a riqueza já produzida pelos proletários e que se encontra sob a forma de dinheiro para a forma capital. Concentra a riqueza já produzida e difusa na sociedade nas mãos da burguesia. A mais-valia produzida pelo professor faz parte, portanto, da porção da sociedade burguesa fundada pelo trabalho proletário.
- O trabalho assalariado do comércio e dos bancos. Como prometido, vamos agora aos bancos e ao comércio. O desenvolvimento do capitalismo torna mais lucrativo ao industrial ceder a venda de seus produtos aos comerciantes do que ele, industrial, vendê-los diretamente. Como a mercadoria terá de ser vendida pelo seu valor, o comércio apenas se encarregará de sua venda se uma parte da mais-valia produzida na indústria for a ele transferida. Para tanto, o comerciante compra do industrial por 8 unidades uma mercadoria cujo valor é, digamos, 10 unidades. Ao vendê-la, em seguida, por 10, se apropria de 2 unidades que correspondem à mais-valia expropriada do trabalho proletário pelo industrial e transferida ao comerciante. Mutatis mutandis, o mesmo ocorre com o pagamento de juros aos bancos (Marx, 1985 ). A riqueza que se converte em salário dos trabalhadores desses setores não inclui, portanto, nenhuma produção de mais-valia. Por isso, tais trabalhadores são trabalhadores improdutivos.
Por fim, a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo só faz sentido, como vimos, do ponto de vista do capital. As categorias de trabalho produtivo e improdutivo são – esperamos que esteja claro – subcategorias do trabalho abstrato. Ser trabalhador produtivo ou improdutivo significa, portanto, imediatamente, ser explorado pelo capital. Do ponto de vista da contradição mais genérica entre o capital e o trabalho abstrato, se desdobra uma exploração que se expressa ao redor dos salários (ou da jornada de trabalho). Na perspectiva da reprodução do capital – e, novamente, esta não é toda a história – todos os assalariados se equiparam no sentido de que lutam por aumentar o preço de sua força de trabalho enquanto os burgueses fazem de tudo para rebaixá-lo.
Tais lutas ocupam um lugar importantíssimo no desenvolvimento da sociedade burguesa, todavia, não são expressões da contradição antagônica entre o proletariado e a burguesia ao redor da propriedade privada, do Estado, do casamento monogâmico (do patriarcalismo) e das classes sociais. O fundamento ontológico dessa distinção entre o proletariado e os demais assalariados está no local distinto que ocupam na estrutura produtiva. O trabalho proletário funda a sociedade burguesa. Com as devidas mediações, os trabalhadores não-proletários, produtivos ou não, têm a origem da riqueza que se converte em seus salários na exploração, pela burguesia, do trabalho proletário. Apenas e tão- somente os proletários vivem da riqueza que eles mesmos produzem. Ou seja, como em todas as sociedades de classe, também o capitalismo se subdivide em uma classe que produz toda a riqueza da sociedade e os outros setores que a parasitam.
Os trabalhos produtivo e improdutivo, portanto, correspondem a uma distinção específica às sociabilidades regidas pelo capital; são subcategorias do trabalho abstrato. Servem para particularizar o trabalho produtor de mais-valia do trabalho que não produz mais-valia. A essa distinção se sobrepõe, sem que a cancele, uma outra: a relação entre o trabalho abstrato e o trabalho fundante do ser social. O trabalho fundante da sociabilidade burguesa – que corresponde, nos dias de hoje, ao trabalho “condição eterna” (Marx, 1983, p. 153) da vida social – é o intercâmbio com a natureza realizado pelo trabalho proletário. Esse produz o capital pela conversão da natureza em meios de produção e de subsistência; os demais trabalhos assalariados, gerando ou não mais-valia, não produzem nenhuma nova riqueza e, por isto, tal como a burguesia, parasitam o trabalho proletário. O que distingue a burguesia desses setores assalariados parasitários é o fato dela extorquir diretamente o trabalho proletário – e, com isto, ficar com a maior parte da riqueza produzida. Aos assalariados não- proletários resta a disputa pela divisão do extorquido dos operários pelas lutas 'econômicas' (Lênin, 1978) ao redor do valor dos salários. Apenas o proletariado reúne, por isso, as condições históricas para se converter no sujeito da revolução pela abolição da propriedade privada, do Estado e do casamento monogâmico (o patriarcalismo). Por isso, tal revolução, para distinguir das revoluções burguesas, é cientificamente denominada de Revolução Proletária.
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